Após os atos apontados como racistas na festa "miss-bixo", realizada por repúblicas estudantis ouro-pretanas, a prática de "blackface" voltou a ser discutida. O termo é utilizado para descrever um ato racista, no qual uma pessoa pinta o rosto de preto ou marrom com o objetivo de escurecer a pele e representar, de forma pejorativa, um indivíduo negro. A caracterização surgiu nos Estados Unidos no século XIX, em apresentações feitas exclusivamente para gerar humor e entretenimento de pessoas brancas, que ridicularizavam negros e associavam estereótipos à cor da pele. Somente a partir da década de 60, quando as lutas pelos direitos civis ganharam mais destaque, esses shows passaram a ser rigorosamente criticados.
Esta entrevista busca debater sobre os processos discriminatórios resultantes do racismo e sobre o papel da universidade na luta contra a distinção de pessoas com base na cor da pele. Em ordem alfabética, os convidados são os seguintes membros do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP):
- Ângelo de Oliveira Gomes Teixeira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFOP, coordenador adjunto do Neabi e membro do Coletivo Negro Braima Mané;
- Clézio Roberto Gonçalves, professor do Departamento de Letras da UFOP, membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), vice-líder do Grupo de Pesquisas sobre Linguagens, Cultura e Identidades (Gelci/UFOP) e vice-coordenador do Neabi;
- Janete Flor de Maio Fonseca, professora do Departamento de Educação e Tecnologias da UFOP e colaboradora do Neabi;
- Sidnéa Francisca dos Santos (NêgaSid Du Veloso), historiadora formada pela UFOP, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade, pesquisadora do Coletivo Outro Preto e integrante do Neabi.
Como vocês compreendem o fato de as repúblicas chamarem os novos acadêmicos de "bixo"? Isso ocasiona uma desqualificação e desumanização das pessoas?
Ângelo: É preciso destacar que tudo se assevera quando falamos de repúblicas federais que adotam esse comportamento, pois aqui são instituições muitas vezes criadas a partir de investimento público, que deveriam fazer crescer os dados de assistência estudantil, acolhendo principalmente discentes de menor condição financeira. O sistema de "autogestão", adotado por tais repúblicas com permissão da UFOP, é concorrente com o que conhecemos como sistema "socioeconômico", adotado nos conjuntos 1 e 2 de moradias estudantis na cidade de Mariana. No primeiro sistema, as repúblicas têm liberdade de escolher quem será ou não morador da casa, o que abre espaço para atitudes que são, de fato, reminiscências dos "trotes" (já proibidos por regimento da Universidade), que têm como característica a depreciação e desumanização desses jovens universitários a partir de um sistema hierárquico.
Clézio: A UFOP é uma instituição herdeira de uma "tradição" muito conservadora. Essa terminologia — bixo — vem daí. Certos tratamentos, lá na sua origem, já eram bem questionáveis. Na atualidade, são ainda mais obsoletos e já deveriam ter sido abolidos.
Janete: Não há como não perceber que a recepção dada pelos alunos veteranos aos alunos calouros é marcada por ações que, a meu ver, reafirmam hierarquias, preconceitos e violências. Penso que essas práticas deveriam ser substituídas por acolhimento, solidariedade e compromisso social, principalmente numa universidade pública. E isso tudo pode acontecer de forma alegre e divertida.
Sidnéa: Há muito que banir na prática republicana em Ouro Preto. Chamar uma pessoa de "bicho" por si só já coloca essa pessoa em uma subcondição. Sabemos do tratamento dado até o famigerado processo da escolha da pessoa para morar definitivamente na república. Esse assunto precisa ser tratado com a gravidade com que acomete a vida das pessoas. Esse surto que vemos de trotes, processos abusivos e desrespeitosos, precisa mudar, não dá para aceitar essas práticas na Universidade.
Quão prejudiciais são os processos de aceitação dos moradores das repúblicas e a não prática de um discurso de inclusão de pessoas negras?
Ângelo: Trata-se da deturpação de um investimento público, no caso das repúblicas federais, pois este sistema não amplia em nada o oferecimento de vagas em moradias para pessoas necessitadas, que não apresentam condição financeira para se manter na cidade de Ouro Preto e seguir com os estudos. No caso das repúblicas particulares, trata-se da manutenção de um sistema que propicia a perpetuação de atitudes racistas, sexistas e homofóbicas, pois não são raras as denúncias sobre tais acontecimentos nos ambientes dessas instituições. A permissão ou a vista grossa que faz a UFOP para este tipo de ato faz com que a Universidade se coloque como conivente com eles, pois são repúblicas que se utilizam do nome da Universidade, são compostas apenas por estudantes desta Universidade e realizam seus eventos (de onde vêm muitas das denúncias, como o último caso de "blackface") em ambientes da própria UFOP. Tudo isso evidencia esta Universidade como responsável por tais atos e por tais discentes, o que torna necessária a ação e o envolvimento desta nas referidas denúncias, com posicionamento público, promoção de atividades e medidas educativas a respeito, bem como apuração e punição de pessoas envolvidas.
Clézio: É fato que a questão é bem mais ampla. Talvez seja o momento oportuno para a Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace) fazer um movimento, com o Conselho Universitário (Cuni), de revisão e atualização da
Resolução Cuni nº 1.540, de 21 de outubro de 2013, que trata do Estatuto das Residências Estudantis de Ouro Preto, propondo uma discussão inicial, por exemplo, sobre cotas raciais nas moradias estudantis federais. Nunca é tarde para nós, UFOP, professores e Neabi, revermos nossas ações pedagógicas e escolhas didáticas, enquanto educadores, pois é fato que estas não estão sendo suficientes para a formação de nossos e de nossas estudantes, para torná-los(as) pessoas mais conscientes, mais humanas e preparadas para lidar natural e cotidianamente com a diversidade, sem racismo, misoginia, homofobia, transfobia etc. Ou seja, faz-se necessário um amplo compromisso institucional com a educação para os direitos humanos.
Janete: A sociedade brasileira tem enfrentado, com forte resistência, o racismo, a homofobia, o sexismo, a xenofobia, enfim, cada vez mais a diversidade vai conquistando seu espaço de representatividade. Assim, é inadmissível que, dentro de uma universidade pública como a UFOP, as transformações não cheguem a todos os alunos. A luta antirracista, por exemplo, não acontece nas repúblicas? Por quê? Os debates e manifestações contra o racismo devem mobilizar também os não negros. E por que isso não está acontecendo nas repúblicas que abrigam alunos da UFOP? Acredito que as repúblicas podem realizar uma ampla renovação, atualizando suas ações e fazendo um importante trabalho de acolhimento e conscientização. Mas também reconheço a falta que a educação para as relações étnico-raciais faz para os alunos dos diversos cursos da Universidade — hoje, basicamente acontece nos cursos de licenciatura, mas, afinal, a luta antirracista não será enfrentada apenas nas escolas, mas também em hospitais, empresas, museus, consultórios, espaços esportivos etc. Os alunos chegam à UFOP vindos de várias realidades, e aqui precisam de apoio e acolhimento. Lutamos com eles. Mas é preciso uma ação educativa importante, no sentido de que haja um entendimento da comunidade ufopiana de que a luta antirracista, assim como outras, é sim um problema a ser enfrentado por todos. O que me assusta é que manifestações tão reacionárias venham de jovens. Isso precisa ser uma reflexão importante para todos nós.
Qual a sua avaliação sobre as ações praticadas no âmbito da Universidade para o combate ao racismo? Quais medidas podem ser sugeridas para melhorar esse aspecto?
Ângelo: As medidas de enfrentamento e combate ao racismo que uma instituição como a UFOP devem tomar podem ser divididas em três formas: ações afirmativas, medidas punitivas e medidas educativas. Pensando em que medidas a UFOP deve tomar para melhorar neste aspecto, o Coletivo Negro Braima Mané — a partir de reflexão sobre este último ato racista que evidencia situação de pouco conhecimento dos discentes sobre o tema do racismo e das relações étnico-raciais — propõe, em documento entregue à Prace (pró-reitoria responsável pelo processo de sindicância aberta sobre o referido caso), a tomada das seguintes medidas para fortalecer as políticas de ações afirmativas nesta Universidade e coibir/evitar/proibir que fatos como estes se repitam:
- A criação de uma Ouvidoria contra crimes raciais, visando à instituição de um canal seguro para essas denúncias.
- O fortalecimento das políticas de ações afirmativas na UFOP, visando garantir, para além da entrada de estudantes negras e negros, uma boa permanência destes na Universidade, incluindo: a) a uniformização da postura da Universidade em relação às políticas de ações afirmativas em todos os setores desta, não permitindo que determinada pró-reitoria, departamento ou programa de pós-graduação contemple menos tais políticas do que institui a Universidade; b) a reserva mínima de 30% das vagas e bolsas para estudantes negros em todo processo seletivo no âmbito das graduações, iniciações científicas, projetos de extensão, projetos de estímulo e iniciação à docência (Pibid, PET e afins); c) e a reserva mínima de 30% das vagas e bolsas em todos os programas de pós-graduação da Universidade para candidatas negras, não discernindo entre mestrados acadêmicos ou profissionais, lato ou stricto senso, mestrado ou doutorado.
- A criação de uma disciplina de "educação para as relações étnico-raciais", de caráter obrigatório para todos os cursos da Universidade, uma vez que episódios como este demonstram as limitações do corpo discente da UFOP em lidar com esta questão e sinaliza que partirão assim para seus postos de trabalho.
É importante destacar que a UFOP tem um histórico razoavelmente satisfatório quando se trata de ações afirmativas, e foi isso que levou ao cenário de indignação com este último ocorrido. Enquanto coletivo de estudantes negros organizado na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) desde 2015, nós do Coletivo Negro Braima Mané já recebemos denúncias de "blackface" em algumas outras edições desse mesmo evento, mas é certo que a indignação e a mobilização nunca atingiu este patamar. Isto vemos com olhos bem positivos e compreendemos como efeito de uma maior presença negra nesta Universidade, pois são estas as vozes que se mostram indignadas no momento ou que pelo menos se indignaram primeiro. Mesmo assim, o caso evidencia a necessidade de fortalecimento dessas políticas.
Clézio: Um primeiro passo importante é o cumprimento efetivo e imediato da
Lei nº 10.639/03, que determinou a inserção de conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos. A partir dessa inserção, o trabalho das questões raciais se torna perene e constante na Universidade, não ficando exclusivo ao Neabi e ao Coletivo Negro Braima Mané, por exemplo, para encarar o tema da educação para as relações étnico-raciais. Do ponto de vista institucional, de ações impetradas pelos órgãos superiores da UFOP, é preciso avaliar se não é necessário implementar ações e políticas mais robustas e específicas, na graduação e na pós-graduação, voltadas, exclusivamente, para as questões raciais e o combate à desigualdade e à discriminação racial no acesso a editais de pesquisa, por exemplo. Com isso, ajuda-se a combater o racismo não apenas fora, mas também na Universidade, criando-se condições e oportunidades para se estudar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Afro-Brasileira e Africana (1996), um documento que serve para ampliar a compreensão do tema e do que se espera desse passo. Como isso não se garante num toque de mágica, é preciso contratar docentes exclusivamente para esse fim. Não podemos continuar onerando docentes e técnicos em educação, vinculados ao Neabi, e torná-los responsáveis por essa tarefa. Temos uma lei do ano de 2003, no entanto, até hoje, a UFOP não priorizou a destinação de vagas para este fim. Apenas no discurso, não se faz a transformação.
Sidnéa: Quando o Neabi foi criado, nós demos um respiro, porque as questões étnico-raciais começaram a ser tratadas nesse ambiente. Mas o Neabi não pode andar sozinho, ele precisa de apoio e força de outras áreas da Universidade para continuar empreendendo essa luta. A Universidade precisa se enxergar enquanto um ambiente extremamente elitizado e segurar de verdade na mão de quem caminha na luta contra o preconceito, o racismo, o machismo, o sexismo e a misoginia. Porque o que a gente vê acontecendo em Ouro Preto são situações absurdas, inclusive que envolvem o convívio dos estudantes com a população ouro-pretana, não sendo um convívio saudável. A população ouro-pretana sofre com uma série de questões ligadas à perturbação do sossego e ao desrespeito. A recente festa do "miss-bixo" deixou claro as práticas racistas que continuam acontecendo devido ao "blackface".
Janete: Vivemos em um país em que o racismo é estrutural, como bem trabalha Sílvio de Almeida, porém, é, também, um dos países em que a luta antirracista consegue avançar das mais variadas formas. Eu acredito que episódios de racismo, apesar de dolorosos para todos nós, mulheres e homens negros, são oportunidade para reconhecermos os limites de nossas ações e propormos novos caminhos. Penso que já sabemos que as ações antirracistas devem ser institucionalizadas. A universidade pública brasileira vem nos últimos anos recebendo um público diverso, ela precisa aprender com esse público a se tornar um espaço também pluridiverso. Não há como construir uma universidade democrática sem assumir esse compromisso. Então, eu acredito que a educação antirracista deva ser prioridade na formação de toda a comunidade dentro e fora da Universidade. Não podemos esquecer os diversos projetos de extensão sobre a temática, coordenados por professores, mas com forte presença discente. E não menos importante é a forte presença de alunos da graduação e pós-graduação integrados a diversos coletivos negros importantes, demonstrando sua filiação aos movimentos sociais negros. Então? Teremos apoio institucional? Os colegiados serão receptivos? As repúblicas se juntarão a nós? A comunidade quer nos ouvir?
E sobre a ansiedade da sociedade e as respostas que são esperadas em relação à opressão e aos processos discriminatórios?
Clézio: As conquistas nos últimos tempos, a passos lentos, não acompanham a angústia e a ansiedade de muitos, sobretudo da população não branca da sociedade brasileira, ainda mais quando essas leis, resoluções e diretrizes não são efetivamente aplicadas e cumpridas. Mais uma vez, podemos citar: (a) a
Lei nº 10.639/2003, que altera a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e legisla sobre a obrigatoriedade da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar do Ensino Médio e Fundamental na rede pública e particular de ensino; (b) a
Lei nº 11.645/2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de histórias e culturas indígenas nas escolas públicas e privadas; (c) duas leis específicas sobre cotas que incluem a temática racial: a
Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, e a
Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. A primeira refere-se ao acesso às universidades públicas federais, também conhecida como "Lei de Cotas", e a outra se refere ao acesso aos concursos públicos no âmbito federal; (d) um documento de extrema importância, quando nos referimos à formação de professores, é a
Resolução nº 2 de 2015 do Conselho Nacional de Educação, a qual define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores de nível superior, e na qual a temática da diversidade e das relações étnico-raciais está marcadamente presente, fazendo com que atualmente no Brasil seja obrigatório que nossos professores se formem com algum domínio dessa questão; (e) as iniciativas pulverizadas de bancas de heteroidentificação nos processos seletivos de ingresso nas universidades públicas. Apesar de existirem várias documentações, diretrizes e propostas de cunho orientativo, conforme citado anteriormente, para as escolas/universidades públicas, não há o acompanhamento desse processo. As escolas/universidades precisam atuar junto à sociedade e não de maneira isolada, promovendo uma formação acadêmica que nos permita vislumbrar o reconhecimento da cultura dos povos afro-brasileiros, africanos e indígenas como contribuintes para a formação do nosso país e, consequentemente, banir os processos discriminatórios presentes em nossa sociedade brasileira.
Janete: Bem, eu avalio que a mesma sociedade que parece ansiosa, apresenta-se receosa diante da enorme transformação da representatividade negra nos últimos tempos. São muitos valores e práticas que, antes, eram "aceitáveis", e hoje são condenáveis. E assim, penso que a sociedade ainda tem uma longa luta para vencer o racismo e construir uma história verdadeiramente democrática. Mas para isso é preciso entender o racismo atrelado à desigualdade social, educacional, trabalhista, ambiental etc. O racismo tem justificado nossas desigualdades, porém, vencê-lo pressupõe propor uma sociedade justa, e para isso há muita resistência ainda. O certo é que a luta se faz fortalecida e a educação é uma das suas mais potentes estratégias.
O que você pensa sobre o uso de determinados aspectos da característica física como forma de deslegitimar a pauta contra o racismo?
Clézio: É preciso dizer, primeiro, que o racismo faz parte de um processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade. O racismo é estrutural e estruturante da sociedade brasileira. A universidade, como parte dessa mesma sociedade, necessita saber disso. O racismo não se resume, portanto, a atos isolados ou a episódios de um indivíduo, ou de um grupo. Existe o racismo estrutural/institucional e o individual, e ambos precisam ser combatidos. Paradoxalmente, o racismo funciona para todos: brancos e não brancos, de modo a enredar ambos numa ideologia que mascara as relações sociais objetivas, fazendo o racismo parecer algo natural e inevitável; criando estereótipos vistos como verdadeiros, estáticos e imutáveis; naturalizando e omitindo as relações de poder e de dominação. Já o preconceito racial envolve o julgamento ou a internalização de imagens que as pessoas alimentam a respeito umas das outras, com base em atributos racistas. Como todos os preconceitos, é uma ideia preconcebida e cristalizada, que se restringe a uma pequena gama de significados quase sempre negativos. E, por sua vez, a discriminação racial, de acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), ratificada pelo Brasil, significaria: "(...) qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou exercício em condições de igualdade, os direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, social ou cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública". Destaco que, uma das formas de tentar "deslegitimar" o racismo é acreditando que o racismo reverso existe, ou seja, racismo de negro contra branco. Devemos entender que racismo e preconceitos são conceitos distintos, mas que estão interligados. Diferentemente do que pensamos, não é o preconceito que impulsiona o racismo, mas é através do racismo que surgem diferentes tipos de preconceito. O racismo é fruto de um mito criado sobre a cor de pele negra, em que os fenótipos (conjunto de características físicas de uma pessoa) são os escolhidos para criarem um ódio e associarem características negativas às pessoas com concentração alta de melanina. Afinal de contas, reconhecer e valorizar os diferentes grupos étnicos presentes em nossa sociedade, em lugar de apresentar apenas as contribuições das pessoas não negras, é fundamental para expor as desigualdades estruturais que perduram em nosso tecido social e para problematizar a falsa ideologia da harmonia racial existente em nossa sociedade brasileira.
Como podemos acelerar este processo para diminuir a discriminação e o racismo que é reproduzido há séculos?
Clézio: A educação é o melhor caminho, mesmo que para isso envolva tempo maior do que almejamos. Por isso, nós, pesquisadores e integrantes dos Neabs e Neabis, defendemos a urgência de termos nos cursos superiores, também, o ensino (não necessariamente a disciplina) de educação para as relações étnico-raciais. Para isso, esse debate na Universidade deve promover a compreensão e aceitação do outro, com suas diferenças e necessidades, além de alertar toda a comunidade universitária para a necessidade de atuarmos juntos na construção de uma sociedade melhor para todos e todas. Aliás, esse processo de ensino e aprendizagem é permeado pelas experiências raciais. Ou seja, quando não damos visibilidade a elas, os nossos e as nossas estudantes perdem a compreensão histórica da diversidade étnico-racial na formação da sociedade brasileira. Outra maneira de diminuir o racismo em nossa sociedade é abrindo o diálogo estruturado, crítico e democrático, dando voz a aqueles e aquelas que vivenciam o racismo em seu cotidiano, seja de maneira subliminar, em pequenas ações do cotidiano, ou de maneira escancarada, em ações coletivas, por exemplo.
A partir do racismo estrutural e da desigualdade sofrida pelos jovens negros, é evidente observar consequências em suas vidas acadêmicas. O que a Universidade, como principal local de aprendizado e convívio social, pode fazer em relação a ações contra o racismo?
Ângelo: É importante que, ao falarmos de racismo estrutural, percebamos que este se faz, sim, presente na estrutura da sociedade e, obviamente, da Universidade. Mas é estritamente necessário compreender que sua manutenção e perpetuação é feita por pessoas, principalmente pessoas às quais interessa o fortalecimento de uma estrutura racista de sociedade e universidade. A Universidade é, assim, racista em sua estrutura, em suas produções e em seus posicionamentos porque foi criada por pessoas brancas e para servir a pessoas brancas. É necessária uma mudança interna para se poder começar a desmontar essa estrutura. Para ocorrer tal mudança, é necessária a presença dos sujeitos negros dentro dessa estrutura — que aliás é o que tem provocado certas instabilidades neste espaço desde a criação da
Lei nº 12.711, conhecida como "Lei de Cotas". A ampliação da presença negra nas universidades é capaz de mudar sua ótica sobre o mundo e sobre o debate racial que a estrutura. Desde a promulgação da Lei de Cotas, vimos crescer o número de produções acadêmicas feitas por pessoas negras e que têm como tema as relações étnico-raciais; vimos aumentar o número de Neabs, os núcleos de estudos africanos e afro-brasileiros, pelas universidades do país; além de outras mudanças importantes para nós. É preciso viabilizar a presença negra em todos os espaços das universidades, pois são essas pessoas que enfrentam o racismo e construirão ambientes melhores para as pessoas negras que virão.
Sidnéa: Primeiro a Universidade precisa reconhecer que existem falhas. Políticas públicas existem, as Leis
nº 1.639/2003 e
11.645/2008 (que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e indígena na educação básica) precisam efetivamente ser aplicadas nas salas de aula, para alunos do ensino fundamental e médio. A maioria dos que chegam à Universidade chegam com uma zona de conforto e privilégio muito grande e isso acaba gerando todos esses conflitos, tanto com os pais, quanto para os estudantes pobres e pretos. Além disso, tem o fato de que a Universidade tem uma parcela irrisória da população ouro-pretana ocupando suas salas de aula. Não há pertencimento. Quantos moradores de Ouro Preto todos os dias pegam van para sair de Ouro Preto e estudar em outra cidade, com uma universidade pública na cidade? Então as políticas públicas de combate ao racismo e combate à desigualdade social precisam efetivamente fazer parte da pauta da UFOP, no dia a dia da prática universitária.
Qual o seu posicionamento em relação à evidenciação da pauta do racismo "apenas" durante o Mês da Consciência Negra? Em novembro, as manchetes abordam frequentemente o assunto, que nos outros meses é "esquecido".
Ângelo: Essa questão toca em um ponto importante, pois o Mês da Consciência Negra foi uma conquista do próprio movimento negro, que buscou deslocar a comemoração do "13 de maio", que fazia referência à assinatura da lei áurea pela então princesa Isabel, para o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, deslocando também a imagem do mártir da luta contra a escravidão negra de uma mulher branca e membro da coroa para a de um homem preto escravizado que chefiou um quilombo. Essa mudança é importante, e ter um mês para nos lembrarmos deste homem e da luta de nosso povo é também de grande importância, principalmente em um país que dedica suas praças, feriados e monumentos a escravocratas e ditadores. O que se mostra como problema neste caso é que a lembrança que a data provoca em um mês não é suficiente para desfazer o apagamento que sofremos o ano todo e a vida toda: apagamento de vozes que pedem por justiça contra o genocídio da população preta que ocorre o ano todo; apagamento de lutas pela criação e manutenção de políticas públicas para o povo negro; apagamento de ações de enfrentamento do racismo que promovemos durante todo o ano e que somente recebem visibilidade no mês de novembro.
Janete: A pauta do racismo vem sendo minimizada há muito tempo no Brasil, e isso só o fortaleceu. Herdamos de Gilberto Freyre e companhia a falsa ilusão de uma democracia racial. Hoje, nós negros sabemos que aqueles que consomem nossa cultura muitas vezes não suportam a nossa existência. Assim, não adianta ouvir Racionais MCs, Emicida, Djonga, e continuar nos achando inferiores. E quanto à Universidade, chegar aqui foi uma conquista da vitoriosa luta do movimento social negro, que precisa ser conhecida por todos. É um exemplo de que há, sim, uma proposta de uma sociedade antirracista. Mas ainda estamos em luta, para que tenhamos mais professores negros, mais técnicos negros, mais pesquisas com temas de interesse dos negros, que o pensamento negro seja conhecido e discutido em nossas aulas. E o maior de todos os desafios: precisamos construir uma história dos negros deste país, não de escravos, mas de homens e mulheres negros, suas lutas, suas resistências, suas estratégias de sobrevivência, seus modos de vida, reconhecendo a importância dessa história como componente da história do Brasil, e não como um anexo. Só assim, quando olharem para nós, verão nossa cidadania, conquistada com a força da nossa história ancestral. Sem isso não há respeito. Então acredito que a UFOP tem uma grande chance de ser o exemplo para todo o país, de buscar a visibilidade da presença de negros e negras em Ouro Preto, na UFOP, em cada curso, em cada seção; de mostrar o quanto somos imprescindíveis para conhecermos este país. A conquista das comemorações do "Mês da Consciência Negra" foi um grande avanço, um passo, e agora vamos além. Como no filme "Medida Provisória", queremos reafirmar nossa cidadania brasileira. Não somos estrangeiros e, portanto, tanto no país como na Universidade, dizemos: vamos ficar aqui!
Sidnéa: Sobre o calendário do Brasil, com datas comemorativas para falar sobre o racismo, isso já não nos cabe mais. Nós falamos de racismo todos os dias. Da hora que eu acordo à hora que vou dormir, eu, como mulher negra, preta, pobre e da periferia, combato o racismo 24 horas por dia. Então, mais ações precisam ser feitas para não precisar ficar na sobrecarga de militância. A Universidade precisa quebrar esses muros que a separa da comunidade ouro-pretana. Ela precisa ter mais envolvimento. Porque a UFOP está inserida em um município em que mais de 70% das pessoas são autodeclaradas não brancas. A gente observa a população ouro-pretana trabalhando na UFOP nos serviços gerais, laboratórios… mas quantos de Ouro Preto estão ocupando a UFOP como estudantes? Essa realidade precisa mudar, não dá para falar do racismo só no 13 de maio e 20 de novembro, pois as práticas racistas estão acontecendo diariamente. O racismo é crime e essas práticas vão ser combatidas. A gente vai continuar lutando por igualdade, equidade e respeito sempre.
NEABI - O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFOP está completando 10 anos, pois foi criado oficialmente com a
Portaria Reitoria nº 333, de 31 de julho de 2012. Desde então, tem desenvolvido sistematicamente uma série de atividades no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão relacionadas à temática étnico-racial, tanto institucionalmente quanto na interlocução com a comunidade externa.
COLETIVO NEGRO BRAIMA MANÉ - Existe desde 2015 e integra estudantes negros e negras da UFOP. É responsável pela organização e implementação da Calourada Preta, que já conta com sete edições. O intuito é fortalecer os laços de negritude existentes dentro e fora do âmbito universitário, de forma conjunta.