Nesta quinta (9) é celebrado o Dia Internacional contra a Corrupção, tema abrangente e polêmico sempre presente em nosso cotidiano.
O Brasil, que não é exclusividade quando tratamos do tema, mas é sempre um nome recorrente no cenário mundial, ficou na 94ª posição, de um total de 180 países e territórios, no ranking de países que mais têm problemas no combate à corrupção. Quanto mais baixa a posição, pior a situação do país.
O "Em Discussão" da semana entrevista o professor do Departamento de História (Dehis) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Fábio Faversani, que faz um panorama histórico do tema, aborda a situação no Brasil e a relação internacional com a corrupção, além de apontar medidas a serem tomadas para que o problema deixe de ser endêmico no país.
O entrevistado é professor de História Antiga. Ele possui mestrado e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela University of Oxford e pela University of St. Andrews.
Professor Fábio, quais os registros mais antigos sobre corrupção e como era a prática envolvida?
O conceito de corrupção deriva do léxico latino utilizado pelos romanos antigos e a palavra está vinculada ao verbo corromper e todos os seus derivados, inclusive a palavra corrupção. Originalmente, não significava o que entendemos por corrupção hoje, mas estava vinculada a uma coisa bem mais concreta, que era a perda de características originais de algo. Então, por exemplo, se uma semente perdesse a capacidade germinativa, se diria que aquela semente se corrompeu. Depois, a palavra era usada para perda da consciência, por exemplo, ou um momento de confusão mental por um certo desvio da pessoa em relação ao que se esperava dela. Posteriormente, a ideia de corrupção foi utilizada como metáfora para a corrupção moral, quando a conduta de alguém era diferente daquela esperada. A partir disso, temos a corrupção no sentido moderno que utilizamos, que é atuar com uma determinada conduta diferente da esperada em relação a, particularmente, o Estado.
A cidade de Roma, segundo a lenda, foi fundada no século VIII antes de Cristo. As primeiras leis contra a corrupção são bem posteriores a esse momento, datam mais concretamente do século segundo antes de Cristo — ou seja, 600 anos depois que já existia Roma. Então, de fato, a corrupção tem uma historicidade que vai se compondo na medida em que os agentes percebem que a utilização do Estado para finalidades próprias dos indivíduos, que não são sua finalidade original de atendimento ao interesse público, gerava problemas muito sérios para a condução da sociedade. Então, a partir disso, criminaliza-se e tenta-se controlar, sem muito sucesso, essas práticas.
Aqui no Brasil, ouve-se muito a associação do início da corrupção com o período colonial. Como se desenvolveu a corrupção no país?
O início da corrupção pode ser associado ao período da transposição dos aparatos administrativos e ideológicos políticos do Império português para esse território que viria a compor o Brasil. É claro que a história brasileira começa muito antes disso, se pensamos a projeção do território atual para o passado com as sociedades autóctones, que têm uma história muito longa e diversa, mas nesse período não há por que se falar em corrupção, só a partir do período que se convencionou chamar de Colonial. E essa visão da corrupção em território português na América colônia tem tudo a ver com o passado romano. Não porque ele tenha chegado como legado, mas porque o império português, como diversos outros impérios modernos, tomaram o Império Romano como modelo, particularmente na área administrativa do Direito, já que foi incorporada essa ideia de que o Império e o Direito Romano eram um modelo a ser considerado para a constituição de seus próprios corpos jurídicos. Houve, no Império Português, uma conexão muito forte entre as duas coisas: essa experiência do mundo romano com a experiência do Império Português. Não porque uma conduz a outra ou seja origem da outra, mas porque isso constituiu todo o aparato para se pensar Roma como origem.
Essa corrupção construída ao longo da nossa história se estende até os dias de hoje. Muito se fala da corrupção dos governantes ou de algum governo específico, mas ela se alastra por todos os setores e classes da sociedade. Como você percebe a corrupção de forma estrutural em todas as classes e instâncias de governo?
Percebemos nos estudos mais recentes sobre corrupção que ela é um elemento mais estrutural. Em primeiro lugar, porque há muita pressão para acesso aos recursos do Estado. Em segundo lugar, porque vários ramos da economia dependem de corrupção para o seu desenvolvimento. Além disso, algum nível de corrupção sistemática é percebido mais fortemente em alguns segmentos da economia que dependem de corrupção para a decisão de investimentos, como a indústria petrolífera, a armamentista e vários segmentos de infraestrutura que têm uma conexão muito forte com a corrupção historicamente. No caso da indústria petrolífera, esses aparatos de corrupção têm um contexto transnacional muito comum. Então, se percebe hoje a corrupção como algo muito mais estrutural do que o mero desvio de conduta individual ou de um grupo aqui ou ali. Os estudos hoje buscam muito mais tentar compreender essa corrupção estrutural e seus mecanismos e formas, senão para controle e eliminação da corrupção, ao menos para que ela não gere mecanismos competitivos que sejam muito desiguais, quer no campo da economia, quer no campo eleitoral, onde a corrupção também tem esse aspecto estrutural.
A corrupção pode ser considerada o maior mal do país, causadora das mazelas sociais, como a pobreza e a desigualdade, e que impede o Brasil de oportunidades e desenvolvimento?
É difícil dizer qual é o maior mal de um país como o Brasil, que tem tantos males. Mas, em primeiro lugar, precisamos destacar que a corrupção não é o mal só do Brasil. A corrupção, em termos transnacionais, ficou muito evidente inclusive nos escândalos recentes de corrupção que assolaram o país. No caso do Metrô de São Paulo, por exemplo, há empresas internacionais envolvidas. Mesmo no caso do escândalo da Petrobrás, que também é bastante famoso, temos a presença de atores internacionais nesse cenário da corrupção. Então, não é um problema só no país. O problema é mundial e está em vários setores. A diferença talvez seja de escala e de peso em diferentes países, dentro de sistemas capitalistas, sobretudo. A desigualdade no Brasil eu encaro como um mal mais gravoso para o desenvolvimento do país do que a própria corrupção. Essa desigualdade, aliás, faz com que exista a corrupção na indústria do favor, da compra de votos etc. Então, a desigualdade dá espaço para a corrupção, sobretudo na corrupção eleitoral. Eu acho que o principal mal mesmo do Brasil, anterior à corrupção, é a desigualdade, mas em um nível estrondoso. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Não há nenhuma possibilidade de construção do desenvolvimento nem mecanismos eficazes de controle da corrupção, quer pela vulnerabilidade de setores amplos da população, quer pela falta de capacidade de esses vários setores da população atuarem em mecanismos que são os que se provam mais eficazes para controle da corrupção, que é o controle público. Isso pode ser feito pela participação em conselhos, na governança do Estado e na vigilância permanente sobre esses agentes públicos. Isso tudo fica muito dificultado com os níveis amplos de desigualdade que temos no Brasil.
Há muitos discursos, principalmente de líderes políticos carismáticos, sobre o "fim da corrupção criada por tal partido". Mesmo reconhecendo a corrupção como um problema complexo, a sociedade aceita soluções fáceis e enganosas. Por que a sociedade, principalmente nas classes mais pobres, entende o tamanho do problema, mas aceita os discursos mais vazios na primeira oportunidade?
A corrupção está bem difundida nos Três Poderes e também é muito ativa com pressões que são exercidas por parte dos corruptores, aqueles que gerenciam esses aparatos de corrupção e estão fora do Estado. Então, entra governo, sai governo e eles continuam atuando. Isso ocorre tanto com alguns agentes políticos quanto com agentes fora do Estado, nas corporações ou mesmo envolvendo as empresas que acessam esses políticos desde a campanha, com financiamento, que antes ocorria de forma pública e agora só é possível através de Caixa 2. Em outras democracias, esse financiamento por parte dos agentes privados de empresas continua a ser autorizado e tem um peso muito grande na definição de decisões. Ou seja, tem uma corrupção estrutural e vários políticos vão usar isso para desqualificar certos concorrentes e, portanto, se posicionar melhor. Acaba sendo algo comum acusar ou buscar perseguir alguém por corrupção e principalmente se utilizar de mecanismos que a gente pode considerar corrupção de Estado, para fazer essa perseguição, principalmente como se tem observado em tempos recentes. Então, essa justiça que deveria ser cega não é tão cega assim e passa a atuar mais fortemente para controlar os erros de uns do que de outros. Isso tem se tornado muito frequente na cassação de candidaturas.
A ideia não é perseguir os corruptos, mas perseguir algum corrupto que afeta as minhas aspirações, o corrupto inimigo. Quando o corrupto é amigo, tudo bem. Cada um elege seus inimigos de acordo com o seu entendimento, ou ideológico ou econômico. Na verdade, vemos que essa guerra contra a corrupção, essa cruzada que aparece em diversos países do mundo, é muito mais a disputa entre grupos políticos. A busca para eliminar a corrupção, na verdade, busca eliminar adversários e não corruptos, porque ela não é orientada contra toda corrupção de forma generalizada, mas contra certos corruptos escolhidos muito precisamente como tais para serem eliminados do jogo político.
São séculos de corrupção enraizados em nossa história. É uma situação que não vai mudar "do dia para a noite". Quais medidas podem ser tomadas a curto, médio e longo prazo para que a corrupção deixe de ser um problema endêmico e sistêmico no Brasil?
Em primeiro lugar, alterando esses elementos estruturais que movem a corrupção, como a desigualdade de acesso a oportunidades de alguns setores econômicos. Alguns têm mais acesso ao Estado e daí obtêm isenções fiscais, investimentos privilegiados etc. Outro elemento difícil de mudar é a própria desigualdade para se combater, sobretudo, a corrupção eleitoral. Essa indústria do favor da política, que se vê no dia a dia dos municípios, como os pedidos que são feitos para se obter atendimentos que estão previstos na Constituição, deveriam ser um direito humano, mas estão sendo pedidos para um político que oferece ambulância, vaga em hospital, acesso a serviços de saúde básicos etc.
O melhor remédio para o controle desses mecanismos de corrupção é a transparência, através do fortalecimento dos conselhos sociais, a base de participação da sociedade civil, mas que em geral são desarticulados e desprestigiados. Obviamente porque eles geram um problema para alguns atores públicos que não têm compromisso com essa construção social. E também pela disponibilidade das pessoas da sociedade civil, que têm uma situação de limitação muito forte, como boas condições de vida e nível de educação universal de qualidade.
Então, uma das coisas que se faz muito é criminalizar a política, a ideia de que a política é suja, política é podre. Esse entendimento é muito ruim para o combate à corrupção, porque faz com que as pessoas se afastem da política. A política deveria ser exercida por todos. Todos nós fazemos política e estamos na vida política mesmo que não seja política formal. Também acho que o caminho é uma reforma estrutural para termos uma sociedade menos desigual, com os direitos sociais assegurados de fato e não só como palavras na Constituição, e uma maior participação da sociedade na política.
Por outro lado, a política sendo criminalizada cria na sociedade como um todo a ideia de que a política não é para eles. A política seria para os desonestos e isso acaba se verificando mesmo quando as pessoas em geral se afastam dela — quando a política fica com poucos, eles vão atuar em nome do interesse desses poucos. Quando tem muita gente fazendo a política, fica mais difícil essa política se desvirtuar para o favorecimento de poucos.