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Financiamento público do patrimônio cultural

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O financiamento público do patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na preservação das riquezas históricas e artísticas de uma nação. Ao longo dos séculos, as sociedades têm construído um legado cultural diversificado e valioso, que inclui monumentos, artefatos e edifícios históricos. No entanto, a manutenção e a salvaguarda desses tesouros enfrentam desafios significativos, que podem ser superados, em parte, por meio de investimentos públicos. 
 
O financiamento público direcionado ao patrimônio cultural é um mecanismo essencial para garantir a conservação a longo prazo, uma vez que muitos aspectos desse patrimônio são vulneráveis a fatores naturais, envelhecimento, uso inadequado ou até mesmo à ação humana de depredação e vandalismo. Além disso, o patrimônio cultural não apenas enriquece a identidade de uma nação, mas também impulsiona o turismo cultural, a educação e a pesquisa, contribuindo assim para o desenvolvimento econômico e social. 
 
Para conversar sobre a temática do financiamento público do patrimônio cultural, o Em Discussão desta semana traz o professor do Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Getúlio Alves de Souza Matos, bacharel em Administração Pública, mestre e doutor em Administração (Finanças) pela UFMG com doutorado sanduíche na Universidade de Oxford (Reino Unido). 
 
1 - Professor, quando os órgãos públicos divulgam investimentos em manutenção ou criação de patrimônios culturais, ouve-se uma série de comentários negativos da população. Alguns dizem que esse dinheiro deveria ser melhor investido em outros setores. Como acontece essa distribuição?
 
Em uma democracia essas críticas tendem a acontecer, já que muitas vezes as pessoas acreditam em uma solução melhor baseada em seus próprios gostos. Porém, essa decisão alocativa vai além de opiniões populares. É feita através de critérios técnicos juntamente com critérios políticos para definição das prioridades em cada setor do orçamento público. Isso faz com que os investimentos sejam direcionados a todas as áreas, incluindo aquelas com que não temos afinidade pessoal ou que achamos desnecessárias. Assim, temos recursos destinados às diferentes funções do governo. Vivemos em uma sociedade plural e tendemos a acreditar que nossas prioridades são mais relevantes, mas é necessário considerar toda a população. Então é preciso entender que existem pessoas que não gostam do investimento público em cultura, outras que acreditam que podem definir o que é cultura e o que não é, e cabe ao poder público conseguir conciliar esses interesses para colocar todos dentro do orçamento. 
 
2 - Em cidades históricas como Ouro Preto e Mariana o patrimônio cultural acaba sendo um atrativo para turistas. Como o investimento em patrimônio cultural pode contribuir na movimentação econômica da cidade?
 
O patrimônio cultural é um enorme atrativo para o turismo e o investimento público passa a ser fundamental para que ele ocorra e se mantenha como atividade geradora de renda e emprego para a população local. Esse mesmo turismo, se mal planejado, pode chegar a ser predatório para a cidade, na medida em que os ganhos podem não superar os custos para que se mantenha funcionando. Ouro Preto está chegando nesse limite. Por exemplo, no ano de 2023, a cidade tem se mantido na capacidade máxima da rede hoteleira e restaurantes em quase todos os finais de semana e a qualidade de vida pode estar sendo diminuída pela falta de regulamentação ou falta de aplicação das regras que são vigentes na cidade. Podemos mencionar a liberdade que se encontra para estacionar em qualquer lugar, em ruas estreitas, comprometendo a fluidez do trânsito e redirecionando o tráfego para ruas que passam a ter problemas estruturais, ou então o potencial de utilização de calçadas por bares e restaurantes. Mas tudo isso depende de fiscalização para que a cidade preserve a sua harmonia e o bom convívio entre todas as atividades e entre turistas e moradores. Enfim, o turismo contribui com a movimentação econômica da cidade, mas não necessariamente apenas ele é suficiente para que a economia se mantenha em alta. É necessário que a cidade destine recursos para as suas ações usuais, mantendo uma boa estrutura para que o próprio turismo possa se manter ao longo do tempo.
 
3 - De que forma o patrimônio cultural pode ser traduzido como herança histórica para o país?
 
Essa herança pode ser vista a partir do ponto de vista do que queremos deixar para gerações futuras ou do que trouxemos do passado até hoje. Ela carrega o mesmo significado, que é a transmissão de uma geração para outra, assim como o conceito de patrimônio carrega essa ideia. Desde a percepção do patrimônio cultural até a noção da contabilidade, trata-se de uma transmissão intergeracional. Para isso, escolhem-se hoje os bens, formas e elementos culturais que devem ser mantidos para as próximas gerações. Por outro lado, é preciso entender que a visão que trabalhamos hoje é diferente da visão de herança que foi trazida para nós. O que foi transmitido para nós é uma corruptela do que se entendia da sociedade brasileira, essencialmente branca, católica e vinculada a uma série de costumes que não existiam. Então, se resgatarmos desde a instituição do tombamento de algo como patrimônio, apenas em meados da década de 1980 algo não vinculado ao ideário branco e católico foi reconhecido. Por maioria mínima de votos ocorreu uma deliberação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) da cercania do Quilombo dos Palmares. Ou seja, quando falamos de patrimônio histórico, falamos de algo muito recente. Ficamos praticamente meio século sem entender sobre terreiros de Candomblé, Umbanda, sem a legitimação do reconhecimento [desses espaços] como representantes da cultura brasileira, ao passo que temos muitas igrejas tombadas em Ouro Preto há muito tempo. Então a mudança interpretativa do que queremos deixar como herança vai direcionar os instrumentos administrativos para que se estabeleça como queremos ser reconhecidos no futuro.
 
4 - Recentemente tivemos alguns debates nas redes sociais sobre o patrimônio imaterial, especificamente sobre como a identidade das festas juninas mudam, seja pelo tipo de música ou outras tradições que a integram. Qual a importância da institucionalização pelo Iphan de patrimônios como o queijo minas, o frevo ou a língua Asurini?
 
O reconhecimento de determinados padrões de ação como um patrimônio cultural, sobretudo como um patrimônio imaterial, carrega consigo a responsabilidade da salvaguarda. Em outras palavras, reconhecer essa manifestação cultural significa investigar, documentar e criar meios para que ela seja preservada ao longo do tempo para gerações futuras e seja respeitada e valorizada. Então a importância dessa institucionalização é criar um mecanismo oficial de proteção que vai distinguir esses elementos que carregam seu valor intergeracional de outros que não necessariamente têm essa tradição. Claro, novas tradições serão construídas, antigas serão ressignificadas, não podemos acreditar que as tradições vão se manter exatamente como eram. Mas é preciso dar nosso olhar atual para elas e fazer com que nós, enquanto sociedade, criemos meios de mantê-las vivas.
 
Por exemplo, um avanço enorme é o reconhecimento do queijo minas, aliado à legislação sanitária que o regula. O nosso queijo é feito com leite cru, com um padrão de higiene que sempre foi atendido, mas que agora demanda o revestimento das queijarias com aço inox. Vemos que é feita uma pequena adequação no processo de fabricação, mas que proporciona o reconhecimento do nosso produto como ele sempre foi. Com isso, o queijo minas saiu da "clandestinidade" e hoje abastece uma demanda nacional ou até mundial, sendo premiado aonde ele é levado. E ainda mais, as consequências dessa institucionalização vão muito além dos aspectos normativos, elas chegam às casas das pessoas, na medida em que os pequenos produtores agora passam a receber um valor justo pelo seu queijo, melhorando sua qualidade de vida pelo ganho de condição econômica e social.
 
5 - Durante o governo anterior, o Iphan foi muito atacado, com cortes de boa parte da verba para o investimento no patrimônio cultural. Como esses cortes impactaram na manutenção do patrimônio público brasileiro?
 
Existem diversas maneiras de se maltratar uma política pública, pode-se cortar recursos, trocar muitas pessoas responsáveis ou colocar outras pessoas que não se alinham ao interesse da organização. Ao longo dos últimos anos, especialmente a questão cultural tem sofrido bastante, na medida em que pode se ter visões muito diferentes sobre aquilo que é cultura ou mesmo se a cultura é merecedora da atenção pública. E isso não acontece apenas em nível federal, mas também em órgãos estaduais e até em realizações municipais. Vemos que a manutenção do patrimônio público brasileiro sempre é muito fragilizada, não apenas pela falta de recursos, mas também pela falta de comprometimento para com uma política que se mantenha no tempo. Quando consideramos elementos patrimoniais materiais, essa necessidade de manutenção se mostra mais evidente na medida em que há elevados gastos com restauração de bens, por exemplo, como foi o caso da igreja do Santuário de Nossa Senhora da Conceição em Ouro Preto, que foi devolvida à comunidade no final do ano passado após uma longa restauração. Porém, as restaurações são muito mais caras e demoradas do que os processos de conservação preventiva e de manutenção, inclusive privando a comunidade do seu uso. Ou seja, além da recomposição dos valores, é necessário elaborar uma política voltada ao melhor uso desses recursos, com o devido planejamento.
 
6 - Existe investimento privado no patrimônio cultural, mas nem sempre os interesses de quem está investindo está alinhado ao interesse público. Quais as consequências dessa divergência?
 
Existe o investimento privado no patrimônio cultural, e não necessariamente esse investimento precisa estar alinhado ao interesse público. Por outro lado, o interesse público também não necessariamente está alinhado ao interesse coletivo. Como exemplo do primeiro caso, temos os museus completamente privados, que destinam sua atenção somente a quem puder pagar pelo acesso. E tudo bem, pois é uma relação entre particulares somente. Por outro lado, há situações em que o investimento privado é alinhado ao interesse público, como nos investimentos que hoje são feitos por uma mineradora em um museu e em uma orquestra jovem da nossa cidade, provendo formação musical de excelência para crianças e adolescentes, concertos com grande público, shows beneficentes e outras ações semelhantes. Porém, também existe o outro lado, em que ações públicas podem não estar alinhadas ao interesse coletivo, como o destino de vultuosos recursos públicos a uma única sala de concertos e uma orquestra que cobra valores inacessíveis à enorme maioria da população do seu estado. Em outras palavras, não existe uma solução única: todas as formas de participação da iniciativa privada vão gerar alguma discussão em decisões orçamentárias, assim como as escolhas públicas. É um jogo democrático ao qual temos que trazer critérios para análise, revê-los sempre que necessário e buscar um processo que seja o mais aderente possível à nossa sociedade.
 
7 - Existem diversos patrimônios que são nacionalmente e até internacionalmente conhecidos no Brasil, como os museus do centro histórico de Ouro Preto, o Cristo Redentor, no Rio, e o Teatro Municipal de São Paulo. Embora sejam bens públicos, ainda não são totalmente acessíveis à população, por causa da cobrança de preços altos por ingressos para conhecer esses espaços. Como podemos mudar essa realidade?
 
Primeiramente, é preciso dissociar a ideia do bem público de um bem gratuito É uma confusão muito comum, porque determinado bem público pode ter uma concessão privada e há um preço para a manutenção. Essa prática é comum em todo o mundo. O que pode ser feito é uma política de precificação mais adequada desses ingressos para a democratização do espaço, um dia de gratuidade ou uma cota para famílias incluídas no Cadastro Único acessarem os ambientes gratuitamente, por exemplo. Existe também a possibilidade de um investimento privado que faça um subsídio para a entrada de pessoas com baixa renda. É preciso criar facilidades para que o acesso à cultura chegue a todas as pessoas. Porém, é preciso considerar que dificilmente um bem patrimonial consegue se sustentar financeiramente. Ele vai depender de aportes públicos ou privados. Então, é preciso pensar em novas alternativas de financiamento para esses bens que garantam essa perpetuidade. Por exemplo, o patrimônio cultural na Inglaterra possui um fundo de financiamento abastecido pelas loterias do país. Assim, uma parte do recurso das apostas é destinada para a manutenção do patrimônio, incluindo pesquisas e ações educativas. 
 
Em uma cidade como Ouro Preto, é interessante refletir não sobre preços altos, mas sobre quem paga esses preços. Se está sendo pago pela pessoa errada, ele será alto, independentemente de seu valor. E enquanto esta discussão, que é longa, complexa e sem soluções mágicas, não acontecer, estaremos presos à ilusão do desenvolvimento por meio do turismo. Porém, esta lógica de curto prazo não se sustenta, e a experiência internacional está repleta de exemplos, da Ásia à América do Norte. Isso compromete não somente a continuidade do patrimônio mas, principalmente, a qualidade de vida nas cidades que os abrigam.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.
 
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