Em uma cegueira botânica, deixamos de vê-las. Elas estão por aí, muitas vezes nas beiradas das calçadas por onde passamos ou no quintal de um parente, ou são aquele arbusto que nos parece estranho. Talvez o maior vínculo que estabelecemos com uma é por um assopro a fim de realizar um desejo. Pelo menos, esse é um dos sentidos atribuídos ao dente-de-leão, considerado também como uma entre as diversas Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC).
PANC são plantas com as quais nos deparamos no dia a dia, mas que geralmente não entram para o nosso cardápio, ainda que muitas carreguem um valor nutricional alto. Elas foram negligenciadas em nosso circuito urbano devido a um monopólio alimentício implantado pelo agronegócio, com a soja, o milho e o arroz.
Para entender melhor os benefícios oferecidos por essas plantas e os possíveis caminhos para contornar essa cegueira botânica, o Em Discussão desta semana conversa com a professora da Escola da Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Sônia Maria de Figueiredo. A docente é graduada em Nutrição pela UFOP, com mestrado e doutorado em Biomedicina pelo Instituto de Ensino e Pesquisa da Santa Casa de Belo Horizonte.
Professora Sônia, como a gente pode interferir na percepção da população conectada ao circuito urbano para subverter essa cegueira botânica, essa cegueira que a gente tem em relação às PANC?
É com a divulgação científica e trabalhos com a população, hortas caseiras e em escolas. Devemos fazer trabalhos bem simples, de forma que a população tenha acesso [a essa informação]. Por exemplo, temos o hibisco, a taioba, as serralha, a azedinha, e o ora-pro-nóbis, comuns aqui da região e, que já são bem conhecidos. Temos o dente-de-leão, aquele da florzinha amarela, muito potente para o sistema imune e que melhora a anemia também. As Plantas Alimentícias Não Convencionais possuem esta característica: as sementes são espalhadas pelo ar. O dente-de-leão é considerado uma planta daninha, facilmente encontrada em gramados, mas também é uma ótima fonte de minerais e vitamina. Pode estar no preparo de saladas, sucos, entre outras receitas. Essas plantas são muito benéficas para nossa saúde e não são tão divulgadas. Quando a gente explica que são plantas comestíveis, que possuem valores nutricionais importantes, isso facilita muito o consumo. Então acredito que a divulgação, como esta entrevista, é a melhor forma de fazer isso, de dentro da academia para fora.
A academia está demonstrando mais interesse por pesquisas direcionadas às PANC. Qual a sua percepção sobre isso?
Tem bastante pesquisa. O fato é que ainda não são tão populares e são pouco conhecidas. Há, por exemplo, muitas pesquisas que mostram que essas plantas não precisam de adubação, elas nascem naturalmente. Também há instituições que pesquisam receitas com essas plantas.
PANC podem subverter a nossa relação atual com a alimentação, deixando de lado o vínculo de apenas consumidores?
As políticas públicas trabalham no sentido de mostrar à população o quanto é importante resgatar a questão do cozinhar, de trazer a culinária para mais perto de si. Porque você cozinha com sua mãe, com seu pai, com seu filho, e você educa quando traz a culinária para dentro de casa. As pessoas perderam muito isso. Precisamos resgatar a alimentação em família. Temos percebido que isso melhora até a saúde mental, porque ao comer em família as pessoas estão mais próximas umas das outras. Você consegue conversar mais sem o celular e prestar atenção no que está ao seu redor. Podemos perceber o outro. O comer é muito importante, ele é curativo. E o cozinhar também, e trabalhar com PANC agrega maior valor nutricional nas refeições.
Estudantes, nutricionistas e outros profissionais que atuam no mercado alimentício estão levando PANC para o cardápio da comunidade?
Tem um grupo que já trabalha com PANC e um grupo que ainda está pesquisando. É muito diverso, não posso confirmar, mas tem um grupo que está trabalhando bastante com o ora-pro-nóbis, assim como existem pesquisas com outras plantas, como o hibisco. O hibisco até um tempo atrás não era reconhecido, mas recebeu reconhecimento através de pesquisas. A gente vai difundindo, mas é um processo lento. Na academia as coisas demoram mais para sair para o popular. Então a gente tem que vincular a pesquisa com a extensão para difundir o conhecimento e garantir que ele chegue na população de forma correta. Os nutricionistas e outros profissionais, como os engenheiros agrônomos, têm trabalhado muito para difundir as PANC. Não podemos esperar que seja de um dia para o outro, por isso é importante ir nas escolas, feiras, eventos gastronômicos, mostras de profissões, entre outros.
Quais os benefícios àqueles que incorporam PANC no cardápio?
PANC, por contarem com bioativos, não precisam de adubos e são resistentes a pragas, ou seja, não precisam de agrotóxicos e nascem de uma forma natural. Existe um projeto em que acompanho pacientes que estão realizando tratamentos contra o câncer ou pessoas com diabetes que aderem à dieta. Com isso, percebo que os que seguem as orientações da dieta são os que melhoram, apresentam menos sintomas e muitos destes usam PANC de suas hortas domésticas. Os pacientes que utilizam o que a gente recomenda tiveram menos feridas na boca, poucas náuseas, o tratamento para eles não foi tão agressivo quanto pensaram, e [eles] atribuem isso à alimentação que estão seguindo. Isso é potente. Uma alimentação orgânica, sem agrotóxicos, utilizando produtos caseiros, da horta, ajuda muito. Percebemos que uma “rede de apoio” (como família, amigos, vizinhos) também ajuda muito. Também tem a serralha, planta conhecida por combater dores de estômago e que pode ser refogada. Tem o peixinho, que é uma suculenta, muito usada para faringite, e as folhas de batata-doce e beterraba, que são esquecidas — geralmente só se consome a batata e joga fora as folhas —, entretanto elas são anti-inflamatórias.
Qual é a aceitação da Universidade quanto às PANC? Há a possibilidade de disponibilizar essas plantas no cardápio universitário?
Os alunos da Escola de Nutrição da UFOP têm uma atuação nisso, inclusive existe um projeto de hortas comunitárias para ensinar a comunidade a plantar. Nos restaurantes universitários, são duas mil refeições servidas diariamente, para isso deveríamos contar com uma produção em maior escala, o que ainda não é realizável. Por isso elas não são servidas em restaurantes industriais. Se fosse realizada uma produção em massa, perderíasse o caráter natural. A chave da universidade, quando voltada às PANC, pode ser a disseminação da informação entre os estudantes e comunidade. O conhecimento sobre essas plantas representa a valorização de pequenos agricultores pela política de Segurança Alimentar e Nutricional, e a comunidade deve saber da possibilidade evasiva do mercado. Além disso, podendo nós mesmos plantarmos e consumirmos.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.