Criado por Patrícia Pereira em qui, 12/09/2019 - 08:50 | Editado por Patrícia Pereira há 5 anos.
"Há um gosto todo especial em preparar um pudim ou um bolo de uma receita velha de avó", já dizia Gilberto Freyre sobre como as velhas receitas de nossas mães e avós nos fazem recordar momentos íntimos e especiais, como parte das nossas memórias, valores e cultura.
É assim, partindo bem do princípio e utilizando como base um dos livros de receitas mais antigos do Brasil, o "Cozinheiro Nacional", que começa a pesquisa de análise dos registros da receita culinária feita pela jornalista e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto, Ana Paula Martins. Estima-se que o livro utilizado como base pela pesquisadora seja de 1870 e date o início da documentação da culinária mineira.
De forma interdisciplinar, a pesquisa relaciona a gastronomia com as novas mídias e discute o gênero textual receita culinária, a partir da linguística, e a identidade cultural gastronômica, partindo dos estudos da ecologia de mídias, que trata da adaptação das mídias ao surgimento de novas mídias ou às modificações sociais e culturais.
A base da pesquisa é uma comparação entre as receitas antigas e as receitas que vemos ou reproduzimos atualmente por meio de sites ou aplicativos. Para tanto, a pesquisadora relacionou o caráter do gênero textual com a ecologia de mídias, a fim de compreender como o gênero receita culinária foi se modificando com o tempo.
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Segundo o professor e orientador do estudo, Marcelo Freire, é interessante observar como a evolução das mídias interfere na forma que escrevemos e reconhecemos certos tipos de texto, neste caso, as receitas culinárias. Ele reitera a importância do estudo, destacando que a pesquisa aproxima dois campos que não têm uma relação tão próxima, que são os estudos de gênero discursivo e de comunicação e tecnologia. "A dissertação aborda um tema do cotidiano que muitas vezes está fora do radar da academia, que é a forma como a comida representa nossa cultura e como isso é transmitido de geração a geração, seja por meio de cadernos de receitas caseiros, livros, programas de TV etc."
DO SÉCULO XIX PARA O XXI - Para a análise, a pesquisadora escolheu cinco obras, sendo três livros, um site e um aplicativo: o "Cozinheiro Nacional"; o livro "Dona Benta", de 1940, produzido em uma parceria entre Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira e escolhido pela sua relevância; o "Sabores e Cores das Minas Gerais", livro de receitas mineiras de 1998; o site "Panelinha", da apresentadora Rita Lobo; e o popular aplicativo "Tudo Gostoso". prato_de_comida_mineira_-_receitas_analisadas_-_foto_elias_figueiredo.jpeg
"Montamos um protocolo de pesquisa justamente para comparar essas receitas e fomos vendo os três aspectos. Não poderia ser única e exclusivamente uma análise do texto, pois a gente queria relacioná-lo com a mídia, então usamos o conceito de 'gramáticas', de Carlos Scolari, que descreve essas três gramáticas", relata.
As obras têm uma conexão interna, cada uma seguindo um padrão de texto e design. A partir da análise textual, por exemplo, a pesquisadora observou, no livro, as características da época, a disposição das receitas em blocos de texto, sem uma separação entre os ingredientes e o passo a passo. Outro aspecto que também lhe chamou a atenção foi o português de época.
DETALHAMENTO DAS RECEITAS - Ana Paula observou que o gênero textual continua o mesmo, porém com mais detalhes, como o passo a passo e a utilização de tópicos e imagens. Segundo ela, a base dos ingredientes é quase a mesma, variando apenas em alguns momentos: "Podemos ver diferenças de alteração nos ingredientes, por exemplo, a substituição da banha por azeite ou inserção de produtos industrializados que não existiam em outras épocas, mostrando muito do reflexo do tempo no modo de preparação dos alimentos".
A investigação mostra ainda que a gramática da página segue a teoria da ecologia de mídias, combinando características dos livros antigos com as do site ou aplicativo, como "a utilização da letra cursiva, remetendo aos cadernos antigos e trazendo esse teor de afetividade, levando a despertar a memória do cozinheiro".
As diferenças de interação entre a primeira obra analisada, "Cozinheiro Nacional", e a mais recente, o aplicativo "Tudo Gostoso", são claras. A primeira possui uma interação mínima, apenas com anotações ou observações pessoais destinadas ao próprio autor, como, por exemplo, troca de ingredientes, mudanças no preparo ou dificuldades na produção do prato. No aplicativo, a interação é muito maior e mais direta entre o autor e os usuários do aplicativo e do site do programa. Como não há curadoria, todos podem participar, não havendo um padrão de montagem do texto, como afirma a pesquisadora.
Ana Paula Martins conclui que a utilização de sites e aplicativos virou uma tendência, e que eles alcançaram grande popularidade pela facilidade em se obter as informações desejadas. "Hoje o acesso está muito mais fácil, a maior parte das pessoas consultam a internet em vez do livro. Temos mais liberdade em escolher como e o que vamos cozinhar e quais substituições iremos fazer de acordo com os nossos gostos ou ingredientes disponíveis, algo que não acontece quando consultamos os livros".